sábado, 24 de abril de 2010

Conto de fadas


"Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre..." (Cássia Eller/ Renato Russo)






Abriu o guarda-roupa e puxou suas caixas de cartas, essas caíram por todo o chão. Separou as dos antigos namorados, ficou a madrugada inteira lendo minuciosamente cada linha. Eram tantas as promessas feitas, as juras de amor, a cumplicidade e as confissões trocadas. Lembrava-se do carinho, do cheiro, dos beijos. Pensava no conteúdo das cartas que também escreveu, deveriam existir inúmeros “amo-te”, sempre pensava que aquele era pra sempre, mas ai, um dia, o encanto passava. Agora todos eram como estranhos, não habitavam mais sua vida, nem seus pensamentos, devem ter tidos várias após ela, era esquisito pensar dessa forma. E ali, debruçada sobre todas as cartas, relembrava o primeiro beijo, o pedido de namoro, quando conheceu as famílias de cada um, os momentos de alegria e também aqueles de tristeza. Teve vontade de queimar tudo ou jogar na privada e dar descarga, doía pensar que tudo aquilo que sentimos um dia simplesmente acaba, assim, simples. Doía pensar que na verdade nunca amou ninguém, que tudo que sentirá até então era ilusão, talvez carência. E os contos de fadas? E os viveram felizes para sempre? Respirou fundo e começou a guardar tudo, foi guardando com carinho e pensando que esperaria as próximas cartas, e as próximas, até que chegasse o seu pra sempre.

"De tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo." (Caio F.)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Amor?

"Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer..."
(Clarice Lispector)

Hugo bebia seu terceiro copo de vodka barata enquanto xingava Sofia, sua ex-namorada, dizia que ela não valia nada, que era uma vagabunda sem coração.
Na quinta dose já estava chorando como uma criança, chegava a soluçar, "eu a amei como ninguém jamais amará e o que ganhei com isso? Somente ingratidão."
Mais duas doses e pegou o celular, "vou ligar para ela, eu me caso com ela se for preciso, ela é a mulher da minha vida!". Fecha o telefone, desiste de ligar.
Acende um cigarro, enche mais um copo e pensa: "aquela vagabunda deve estar 'dando' pra qualquer um agora, senão pra mais de um, vadia!". Volta a chorar: "como eu a amo, ela não podia terminar comigo, fomos feitos um para o outro, almas gémeas."
O telefone toca, era Sofia:
- Hugo - soluços - não consigo dormir, eu pensei muito e não deveria ter terminado com você, eu te amo, me atormento só de pensar que você poderia estar com outra.
Uma longa pausa.
- Não posso falar agora, você não está enganada, não estou a sós, depois conversamos. Ah, acho melhor não voltarmos mesmo, eu também pensei bastante e você está longe de ser a mulher da minha vida.
Ele desliga o telefone, acende um cigarro, sorri e vai dormir.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sem razão


"Adoro um amor inventado"
(Cazuza)

Ele tinha um jeito desconfiado de olhar para os outros, quando olhava. Os olhos muito azuis pareciam o reflexo do mar. Cabelos bagunçados e encaracolados, talvez fosse um anjo. Pouco sorria, era sério e intimidante. Visual despojado e divertido. Diziam que ele tinha alguns problemas, não era uma pessoa normal, mas estava sempre rodeado de amigos. Muito inteligente, escrevia poesias. Vícios, muitos vícios.
Ela era insegura. Olhos grandes e olhar intenso. Calada perto de muitos, faladeira perto de outros. Cabelos escuros e longos. Pele clara, piercings, tatuagem. Gostava de se vestir sempre estilosamente. Tinha muitos amigos, mas ao mesmo tempo selecionava pessoas. Dizia-se antipática, mas adorável. Unhas roídas, sinal de grande ansiedade. Sincera, extremamente sincera. Amava música. Vícios, muitos vícios.

Seus destinos se cruzaram, seus olhares também e por instantes pertenceram um ao outro. Hoje são como estranhos, tão estranhos que as coisas mais estranhas ocorrem entre eles. Ninguém explica, ninguém consegue explicar. Tão pouco há para se explicar, como dizia Cazuza são destinos traçados na maternidade. E ninguém precisa acreditar.



"Quando fecho os olhos, é você quem eu vejo; aos lados, em cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de mentira, desconstruindo tudo o que planejei, abrindo todas as janelas para um mundo deserto. É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, conta histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor por onde passo todos os dias."

(Caio F.)